Padre Neomir Doutor em Direito Canônico

Dia 02 de dezembro de 2019, com início às 9 horas, na Faculdade de Direito Canônico São Paulo Apóstolo, em São Paulo, o Pe. Neomir Doopiat Gasperin defendeu com brilho a tese doutoral intitulada “A aplicabilidade do Direito Canônico na adscrição a uma Igreja sui iuris e suas implicações jurídicas pastorais”, obtendo o título de Doutor em Direito Canônico.

Em dois anos de estudos, o Pe. Neomir obteve o Mestrado em Direito Canônico no dia 03 de dezembro de 2018, sendo avaliado com nota 10 no exame final de Universa e Summa cum laude (10) para a elaboração, apresentação e defesa da tesina. Na ocasião, ele escreveu sua rica experiência acadêmica (Boletim Nº 72 – Novembro-Dezembro – 2019 – pp. 25-27). Ele relatou sua atitude e disponibilidade da seguinte maneira: “Respondendo positivamente ao plano pastoral da Metropolia Católica Ucraniana São João Batista e da Igreja Católica em geral, que visa melhorar cada vez mais a formação de novos sacerdotes e a formação permanente do clero. Sendo, também solícito a S. Ex.ª Revma. Dom Volodemer Koubetch, Arcebispo Metropolita, aceitamos ainda em 2014, no último semestre de teologia, a missão proposta pelo Arcebispo de estudar Direito Canônico, o qual também está atendendo aos apelos do Romano Pontífice Francisco em formar novos operadores do Direito” (p. 25).

No mesmo espírito de obediência e serviço à Igreja, o Pe. Neomir prosseguiu os estudos e, para o nosso reconhecimento, gratidão e admiração, dentro de mais dois anos, com muito sucesso, finalizou seu doutoramento.

Segundo informações do próprio Pe. Neomir, o Doutorado veio solidificar o aprendizado obtido no Mestrado. Serviu para aprofundar alguns cânones mais utilizados nos tribunais eclesiásticos. O curso visou a pesquisa científica. No início do curso, realizou-se uma semana de aula presencial de metodologia científica. A metodologia seguida é a mesma da Universidade Lateranense de Roma. “Nossa faculdade segue em tudo a Laterano. Talvez, diferencie-se no quesito do ensino do Direito Oriental simultaneamente. Haja vista, me parece que somente na Faculdade Santa Cruz (Roma) que se ensina os dois livros: CIC e CCEO”, comentou o sacerdote. Em uma destas aulas presenciais, o Secretário geral e o Decano passaram os temas dos seminários para serem preparados. Ao todo, foram quatro seminários para serem pesquisados e apresentados. Para cada seminário, um artigo científico foi escrito, pelo qual o doutorando teria que demonstrar suas habilidades de pesquisa e cientificidade. As datas foram passadas com antecedência, de modo que no dia da apresentação de um seminário, era preciso entregar o artigo do segundo, e assim por diante.

Durante as apresentações, cada aluno fazia a apresentação de 10 minutos do seu artigo já entregue. Depois, o Decano e o Secretário geral e todos os demais alunos eram obrigados a sabatinar os alunos que estavam apresentando. Este método, de certa forma, já era um treinamento para a defesa do doutorado. É óbvio que também para obter as notas para o Doutorado. Esta nota era dada por todos os alunos e os dois professores. No final, o Decano somava tudo e fechava a média de cada seminário, a qual seria depois somada com a nota da tese, da apresentação e da defesa.

Os artigos também eram trocados pelos alunos. Portanto, acabava-se obtendo e realizando um bom estudo dos cânones recomendados pela direção. Algumas vezes era mais de um cânon, outras vezes, apenas um parágrafo que deveria pesquisado e redigido como artigo.

O Pe. Neomir resumiu o trabalho acadêmico do doutoramento da seguinte forma: “Basicamente, o acréscimo foi este: o Doutorado permitiu um maior aprofundamento de alguns temas já estudados no Mestrado e obrigou a leitura de várias obras que, de certa forma, serviram para fixar definitivamente este conteúdo em nossa memória, se não pelo gosto pela leitura do tema, então pela força do cansaço da pesquisa e necessidade”.

Depois desse esforço e semeadura, chegou o momento da colheita. No dia e hora marcados, para a formação da mesa julgadora foi primeiramente convidado o Arcebispo Metropolita Dom Volodemer Koubetch, que dirigiu uma oração de invocação ao Espírito Santo – “Tsariu nebesney”, em ucraniano, e Ave Maria, em português. Os três professores foram: Prof. Cônego Dr. Martin Segú Girona – Decano da Faculdade de Direito Canônico São Paulo Apóstolo e Moderador da Tese de Doutorado, também foi da Moderador da tesina de Mestrado; Prof. Dr. Pe. Carlos Roberto Santana da Silva, Vice decano; Prof. Dr. Pe. Jean Rafael Eugênio Barros, Secretário geral. Os dois últimos citados foram professores de várias disciplinas.

O Pe. Neomir teve cerca de 20 minutos para expor uma síntese de sua tese doutoral (ver texto logo abaixo). Os três professores componentes da mesa avaliaram o significado acadêmico da tese e, com exceção do Moderador, que já fez todas as perguntas durante o trabalho de orientação, fizeram suas arguições.

Tendo a palavra, Dom Volodemer fez um reconhecimento e agradecimento às instituições envolvidas no doutoramento do Pe. Neomir: a Faculdade de Direito Canônico São Paulo Apóstolo, que ensinou com seriedade acadêmica; a Kirche in Not, que lhe cedeu a bolsa de estudos; a Ordem de São Basílio Magno, cujos Padres da Paróquia em São Paulo o acolheram em sua residência e o apoiaram copiosamente, estando presentes no ato da defesa o Pároco Moacyr Leczuk, o Vigário Paroquial Josafat Vozivoda e alguns paroquianos ucranianos e latinos; e a Metropolia que lhe confiou a incumbência de se preparar na área do Direito Canônico para prestar diversos serviços canônicos e pastorais. “Mais do que um momento acadêmico, é também um momento celebrativo, de colheita e comemoração, um momento de gratidão”, disse o Arquieparca. Dom Volodemer manifestou especial apreço pelo desempenho acadêmico exemplar do Pe. Neomir, que, além da sua capacidade intelectual inata, dedicou-se com afinco aos estudos, conseguindo fazer o Mestrado e o Doutorado em quatro anos. Destacou ainda que ele é o primeiro sacerdote do Clero diocesano da Metropolia a chegar ao Doutorado. A fim de o “provocar”, estimulando-o para a continuidade de pesquisa, produção e aplicação pastoral de seu estudo, o Arcebispo Metropolita pediu para que o Pe. Neomir apresentasse alguns elementos práticos.

Como foi em seu Mestrado, também na avaliação final do Doutorado, o Pe. Neomir obteve a nota máxima – 10 – Summa cum laude.

Solicitado, o jovem Doutor Pe. Neomir Doopiat Gasprin comentou sua experiência de chegar ao Doutorado em Direito Canônico: “É obvio que é uma grande conquista. Sempre gostei de estudar, ler e escrever, então vem a ser um coroamento ao gosto pessoal pelos estudos. O título de doutor em si não me traz nenhum sentimento de glória ou importância pessoal ou ares de arrogância ou soberba, porque tenho plena consciência que na Igreja todos os ministérios e funções estão para o serviço e não para ser visto. Por isso fico até um pouco apreensivo se irei conseguir servir a Igreja na medida que o título exige, ou seja, se farei jus ao título acadêmico que recebi hoje. Tenho muito presente a fala de São Paulo apóstolo: ‘é preciso que eu diminua para que Ele (Cristo) apareça’. Por isso sei, que esta titulação nunca me fará pensar ou achar que sou maior ou melhor que os outros. A grande verdade é que a Igreja deve estar presente em todas as esferas da sociedade, animando e aperfeiçoando as mais diversas realidades sociais com o espírito do Evangelho, desde as mais simples até as mais cultas. Nesta ótica, todo serviço, ministério e função dentro da Igreja torna-se de suma importância e necessário e de igual valia. Se conseguir ser um instrumento qualificado e útil nas mãos de Deus e da sua Igreja, já serei suficientemente realizado”.

A Metropolia agradece de coração a todos que auxiliaram o Pe. Neomir nesta árdua e brilhante caminhada acadêmica, principalmente à Kirche in Not que concedeu a bolsa de estudos e aos Padres Basilianos que pronta e generosamente o acolheram. E ao Pe. Neomir – nossos parabéns pela conquista, que é também de toda a Metropolia, e votos de frutuosos trabalhos acadêmicos, formativos e pastorais, com as bênçãos e graças divinas.

Secretariado Metropolitano

FACULDADE DE DIREITO CANÔNICO SÃO PAULO APÓSTOLO

APRESENTAÇÃO / TESE DE DOUTORADO

Pe. Neomir Doopiat Gasperin – 02/12/2019

Título:

“A aplicabilidade do Direito Canônico Oriental na adscrição a uma Igreja sui iuris

e suas implicações jurídicas pastorais”.

1) Agradecimentos

– Ao meu Moderador e Decano desta faculdade: Cônego Dr. Martin Segú Girona – pela orientação, atenção e incentivo.

– Ao Secretário geral, professor Pe. Dr. Jean Rafael Eugênio Barros – pela correção metodológica.

– Aos demais professores, pela amizade, pelo esmero e conexões sempre estabelecidos com o direito oriental. Isso também motivou a pesquisa nesta área.

– Aos paroquianos das comunidades: ucraniana e latina, pela presença. Assim como aos padres: Moacyr e Josafat pela companhia ao longo deste caminho.

– Ao Arcebispo Metropolita Dom Volodemer pelo apoio e confiança.

2) Justificativa: Porque decidi pesquisar sobre a “a aplicabilidade do Direito Canônico Oriental na adscrição a uma Igreja sui iuris e suas implicações jurídicas pastorais?

Dois motivos: um é pessoal. É sabido de todos que uma lei posterior ab-roga ou derroga a anterior, mas respeita os direitos adquiridos. Estes são suprimidos somente se a nova lei determinar expressamente. A lei da adscrição vigente até a promulgação do CCEO em 1990 era a estabelecida no Motu Proprio Cleri Sanctitati do Romano pontífice Pio XII. A lei da adscrição em vigor antes do Código de 1990 determinava que o fiel fosse adscrito na igreja aonde recebeu o batismo. Com a entrada em vigor do CCEO a lei foi modificada substancialmente e a adscrição passou a ser na igreja dos pais e nos matrimônios inter-eclesiais na igreja do pai e somente pelo comum acordo na igreja da mãe.

Eu sou filho de um matrimônio inter-eclesial: meu pai é filho de mãe ucraniana e pai italiano e minha mãe descendente de ucranianos tanto da parte paterna quanto materna. Ou seja, em questão de identidade étnica, eu tenho mais ascendência oriental do que latina e fui batizado em 1988 quando a adscrição se efetuava pelo rito do batismo.

Para ser admitido ao sacramento da ordem, a Cúria metropolitana exigiu que fosse solicitada a dispensa da Santa Sé. Protestei contrariamente, alegando que o procedimento não precisava ser aplicado para mim nos termos em que foi proposto porque os professores de Direito Canônico na teologia haviam dito que tal procedimento era para fiéis totalmente latinos, mas como seminarista acatei as determinações da Cúria e o Bispo pediu que realizasse o que estava sendo pedindo. Como não era formado no assunto e também não pretendia uma discutir com as autoridades, digamos que obedeci, mas intimamente não aceitei pacificamente que fosse aplicada uma lei que não era para o meu caso.

Segundo motivo: antes de começar a redação da tese, realizei uma pesquisa de campo, que não está nesta tese porque meu Moderador orientou que publicasse somente depois de ser aprovado no doutorado e poder falar com autoridade. A pesquisa foi realizada na Igreja ucraniana e na Igreja melquita. Com a pesquisa constatei que a adscrição não é aplicada nas Igrejas orientais existentes no Brasil e isto é uma falha e um grande perigo que ameaça as Igrejas orientais ao desaparecimento no futuro, uma vez que a adscrição é necessária, ou seja, precisa existir fiéis canonicamente reconhecidos – adscritos para que a Igreja exista. O cânon 38 do CCEO estabelece que a simples frequência aos sacramentos e a liturgia não comporta a adscrição. A mesma coisa reza o CIC c. 112, §2.

Hoje há muitos fiéis que possuem descendência oriental, mas que não estão legitimamente adscritos em uma Igreja de tradição oriental. Isto gera graves implicações jurídicas pastorais. Além do desaparecimento e enfraquecimento das próprias igrejas, há outras implicações como a própria validade do matrimônio. Haja vista que ninguém pode celebrar um matrimônio de um fiel que não seja seu súdito.

Sabemos que a má interpretação da lei pode conduzir para muitas injustiças, mal estar e constrangimentos na comunidade cristã. Eu senti-me constrangido quando equivocadamente disseram-me que não tinha direitos na Igreja aonde eu fui batizado, crismado, cresci e dei catequese. Não senti-me a vontade para escrever uma carta a um bispo latino desconhecido pedindo permissão para ser ordenado na Igreja ucraniana. Foi aí que vi que alguma coisa era preciso ser feita para tutelar e clarificar os direitos destes fiéis filhos de matrimônios inter-eclesiais que não foram e não são legitimamente adscritos a Igreja ucraniana e que hoje a frequentam e amam-na.

O desejo de pesquisar nesta área só aumentou quando na primeira aula que tive na Faculdade de Direito Canônico São Paulo Apostolo da Arquidiocese de São Paulo, ouvi o decano dizer com convicção: “que o Direito Canônico é um instrumento que deve facilitar a caminhada do Povo de Deus rumo ao escaton”; sempre pautado na justiça e na equidade. Isso mudou totalmente a minha visão sobre o Direito canônico. Visão presente em grande parte do clero de ser uma disciplina de cerceamento da liberdade, de punições e legalismos. O Direito Canônico é eminentemente pastoral e se aplica a todas as circunstâncias da vida da Igreja. Ou seja, é uma disciplina de suma importância.

Tudo isso motivou-me a esclarecer a doutrina da adscrição, que diga-se de passagem: é complexa e requer muita atenção. É um tema ainda muito atual. Haja vista o grande número de fiéis orientais que hoje encontram-se em territórios de predominância latina. Lembrando também que o Romano pontífice Francisco em 2016 concordou a legislação latina sobre a adscrição com a oriental.

Hoje aquilo que foi um “descontentamento inicial e constrangimento” cedeu lugar exclusivamente ao agradecimento, pois se não fosse o ocorrido talvez não tivesse pesquisado nesta área. Verdadeiramente, Deus, às vezes, escreve certo por linhas tortas.

A tese: “A aplicabilidade do Direito Canônico Oriental na adscrição a uma Igreja sui iuris e suas implicações jurídicas pastorais”, foi construída com três capítulos:

Capítulo I: A natureza jurídica das Igrejas sui iuris: Neste capítulo procurei explicar o que é uma Igreja sui iuris, quais são os seus elementos constitutivos e qual a diferença para com uma Igreja particular, cujo termo é equivoco na canonística oriental. Apresentei a natureza das Igrejas sui iuris porque a adscrição é fundamental para a existência destas igrejas.

Primeiramente quando somos batizados na Igreja católica não nos tornamos fiéis sujeitos de direitos e deveres imediatamente de toda a Igreja católica, mas de uma Igreja sui iuris, ou seja, pertencemos a uma parte das 24 partes que formam o corpo católico. Também apresentamos neste capítulo como uma Igreja sui iuris pode ser organizada; a importância do rito como patrimônio teológico, litúrgico e disciplinar; a diferença entre rito e tradição. Termino o capítulo mostrando que a Igreja católica é uma comunhão de Igrejas do Oriente e do Ocidente, tendo cada uma um direito próprio e um rito específico.

Capítulo II: Ordenamento jurídico comum das Igrejas orientais: Neste capítulo procurei apresentar o corpo canônico que traz a disciplina da adscrição. Falei brevemente sobre a formação do código dos cânones das igrejas orientais, suas fontes legislativas e o seu iter redacional.

Conhecer a sua formação é fundamental para uma melhor compreensão e aprofundamento do conteúdo de seus cânones. Para melhor entendê-lo precisamos conhecer o seu espírito, a sua índole, a sua origem, o seu aspecto colegial e sua natureza jurídica. O código tem uma história e uma finalidade. É fiel a antiga tradição (aos sacri canones) e totalmente atual, pois expressa numa linguagem jurídica o ensinamento, a eclesiologia e os princípios diretivos do Concílio Vaticano II. Através do estudo das suas fontes e do seu iter redacional podemos melhor compreender o contexto em que se insere a adscrição. Como o código legisla sobre a pertença de um fiel a uma Igreja oriental.

Capítulo III: A adscrição a uma Igreja sui iuris e suas implicações jurídicas pastorais: Este capítulo é a espinha dorsal da tese. Neste capítulo apresento o desenvolvimento histórico e jurídico da disciplina da adscrição a uma Igreja sui iuris oriental. Bem como a aplicabilidade do direito oriental nos casos concretos. O aprofundamento, o desenvolvimento e o esclarecimento da adscrição é a novidade desta tese de doutoramento.

Acredito que consegui esclarecer a doutrina da adscrição, que em geral é complexa e que se adquire de três modos: pelo batismo, pela entrada na plena comunhão com a Igreja católica e pela mudança da própria adscrição. Cada um destes modos abre espaço para uma série de possibilidades. O mais complexo é pelo batismo que abre sete possibilidades de ser adscrito.

Vários problemas e conflitos pastorais podem ser amenizados ou solucionados se a legislação canônica sobre a adscrição for aplicada de acordo com o estabelecido pelo Legislador no código de direito canônico e interpretado corretamente. O objetivo desta tese foi clarificar a lei da adscrição nas Igrejas orientais.

Segundo Tanasiychuk, a questão da pertença de um fiel à Igreja católica pela adscrição a uma das Igrejas orientais continua sendo um tema atual e importante do ponto de vista teológico, ecumênico e disciplinar, pois da adscrição depende a condição canônica dos fiéis e consequentemente a validade ou a liceidade para alguns de seus atos jurídicos posteriores.

A doutrina sobre a pertença de um fiel para uma determinada Igreja católica oriental, iniciou com o Romano pontífice Bento XIV (1740)[1], posteriormente confirmada pelo Romano pontífice Pio XII no Motu proprio: Cleri Sanctitati (1957)[2]. Depois, pelo Romano pontífice São Paulo VI no Decreto conciliar do Vaticano II: Orientalium Ecclesiarum e finalmente pelo Romano pontífice São João Paulo II no Código dos Cânones das Igrejas Orientais[3].

A legislação atual mudou completamente o modo de tramitação pelo qual um fiel começa a pertencer a uma Igreja sui iuris. A legislação anterior do Motu proprio: Cleri Sanctitati do Romano pontífice Pio XII determinava e atribuía valor jurídico ao rito litúrgico como ponto determinante da futura condição canônica do fiel[4]. Com a ascensão do Concílio Vaticano II há uma mudança substancial. A noção de rito se alarga e passa a compreender não somente a liturgia, tornando-se ponto de referência para a identidade de cada Igreja sui iuris. O Legislador no texto legal determinou que o rito não pode ser confundido com Igreja sui iuris.

A noção de adscrição a uma Igreja sui iuris articula a relação canônica de um fiel cristão a uma destas igrejas. A adscrição, como foi mencionada, se efetua num primeiro momento pelo batismo, mesmo que o rito observado não seja o fator determinante e, pela entrada na comunhão plena. A adscrição uma vez adquirida pode ser transferida ou mudada para outra Igreja sui iuris. Szabó salienta que a mudança de adscrição é uma das modalidades previstas para os fiéis. Este ato, de per si, excepcional, requer uma autorização singular. A princípio é proibido ao fiel mudar de Igreja sui iuris sem real e justa necessidade e sem o consentimento da Sé apostólica (CCEO cc 31 e 32).

Depois da mudança substancial, o critério do rito, presente desde o século XVI na ordem canônica, foi substituído por um critério eclesiológico. Primeiro no código oriental e atualmente também no Motu proprio: De Concordia inter codices do Romano pontífice Francisco.

No entanto, os direitos adquiridos antes da promulgação do código permanecem intactos, ou seja, os fiéis que antes de 1990 foram adscritos a uma Igreja sui iuris pelo rito litúrgico do batismo, continuam adscritos nestas igrejas, pois o Legislador respeitou todos os direitos adquiridos e privilégios apostólicos vigentes no momento da entrada em vigor do código.

Em relação à adscrição, de acordo com Salachas e Nitkiewicz, os problemas jurídicos pastorais surgem quando os genitores do batizando pertencem a Igrejas católicas sui iuris diversas. Nestes casos, o Legislador estabeleceu que o filho menor de 14 anos de idade, com o batismo é adscrito a Igreja sui iuris do pai. Nos casos em que somente a mãe é católica ou quando os genitores de comum acordo decidem, é adscrito a igreja da mãe, salvo o direito particular estabelecido pela Sé apostólica.

No entanto, este filho ao completar os 14 anos tem o direito de escolher se permanece na igreja que foi adscrito ou muda para aquela que lhe convém (do pai ou da mãe). E o procedimento administrativo é o canon 36 do CCEO.

Em fim, não temos tempo de apresentar todas as possibilidades de adscrição e suas implicações jurídicas pastorais. Somente Saliento que para a existência futura destas Igrejas, principalmente nas diásporas não basta apenas ter pessoas participando das celebrações, uma vez que a frequência às celebrações não origina a adscrição[5], mas é preciso que estes fiéis tenham, além do batismo, o reconhecimento canônico para poderem fazer uso de seus direitos e deveres.

Os fiéis ao não conhecerem o procedimento sobre a adscrição, simultaneamente declinam de seus direitos[6] e os sacerdotes ao não observar fielmente a lei[7] sobre a adscrição e ao não apresentar as possibilidades de adscrição para os genitores de Igrejas sui iuris diversas, veladamente contribuem para a extinção de suas próprias Igrejas, pois a “ignorância” da lei não impede o efeito delas[8]. O termo “ignorância da lei” é um termo técnico e jurídico dentro do Direito Canônico, por isso o uso da expressão.

A falta da adscrição dos fiéis orientais pode ser equiparada, a nível de compreensão a condição dos cidadãos indigentes: “sabe-se que existem porque vivem”, mas não possuem um documento que certifique a sua existência real, ou seja, haverá fiéis participando da vida das comunidades orientais, mas sem um documento que ateste a sua adscrição a uma destas igrejas e que lhes garanta os seus direitos de fiéis legitimamente adscritos.

A comissão de redação do código oriental alertou ainda em 1896 que a sobrevivência de uma determinada Igreja oriental não depende somente da observância das leis do código, mas do trabalho, da atenção, do empenho pastoral de seus pastores e de seu bom relacionamento com as outras Igrejas sui iuris[9].

A falta de adscrição pode acarretar várias consequências jurídicas pastorais. Por exemplo: um fiel, filho de mãe oriental e pai latino, mesmo que se considere oriental, que tenha crescido em uma Igreja oriental, que ame a Igreja, que ame a cultura e as tradições orientais, mas que não foi devidamente adscrito a uma Igreja oriental no momento do batismo, permanece fiel latino. Consequentemente se este fiel vir a unir-se em matrimônio na Igreja oriental com outro fiel do rito latino, seu matrimônio será nulo, pois o sacerdote que celebrou as bodas não será considerado ministro próprio para celebrar o matrimônio. Haja vista que o Legislador determinou no texto legal que o matrimônio seja celebrado pelo hierarca do lugar ou pelo pároco próprio ou outro sacerdote delegado (CCEO c. 828, §1). Ainda estabelece para a validade, que ao menos um dos cônjuges seja súdito legitimamente adscrito a uma das Igrejas sui iuris dentro dos limites de sua jurisdição (CCEO c. 829, §2).

Concluindo, pode-se dizer que atualmente a adscrição de um fiel a uma das Igrejas orientais se dá de acordo com a norma do direito, independente do rito litúrgico em que alguém foi batizado. Não é o rito do batismo que atualmente determina a pertença jurídica de um fiel a uma Igreja sui iuris, mas a igreja dos genitores.

Lembrando que a lei vigente sobre a adscrição aplica-se somente aos fiéis orientais nascidos depois da promulgação do código, pois os direitos adquiridos na lei anterior, cuja adscrição se dava pelo rito litúrgico do batismo, permanecem intactos.

No código foi conservada a prevalência da adscrição de um filho menor à igreja do pai quando se trata de um matrimônio intereclesial, mas há várias possibilidades de adscrever o filho menor de 14 anos na igreja da mãe oriental.

A adscrição pode ocorrer de três modos: pelo batismo, pela entrada na comunhão plena e pela mudança ou passagem para outra Igreja sui iuris.

No entanto, os filhos de casais pertencentes a Igrejas católicas sui iuris diversas e de pais que mudaram para outra igreja, ao completarem os 14 anos de idade, tem plena liberdade de escolher se permanecem na igreja que foram adscritos ou se voltam para a igreja de origem. Assim como podem mudar para a igreja do outro genitor que preferirem e melhor se sentirem espiritualmente. A mudança ou passagem para outra igreja deve conter motivações que reportem a salus animarum. Praxe levada em grande consideração pela Sede apostólica através do seu Dicastério: Congregação para as Igrejas Orientais.

Para todos estes casos o Legislador estabeleceu que a passagem ou mudança de Igreja sui iuris para ter validade deve ser manifestada diante da autoridade competente: ordinário próprio ou pároco próprio ou outro sacerdote por um destes delegado e na presença de duas testemunhas e anotada nos devidos livros paroquiais.

[1] Assevera Tanasiychuk que no pontificado de Bento XIV a pertença eclesiástica dos fiéis cristãos e o seu desejo de mudar a própria adscrição e tradição obtém uma grande importância e se torna objeto de estudos do Romano pontífice. Seus estudos e determinações encontram-se em seus documentos: Benedictus PP. XIV, Cost. Ap. Etsi pastoralis, 26 maii 1742, in Collectanea Sacra Congretionis de Propaganda Fide, Decreta, Instructiones, Rescripta pro apostolicis missionaribus, ann. 1622-1906, vol. 1, Romae, 1907, pp. 118-130; Benedictus XIV PP, Ep. Encycl. Demandatam,24 dic. 1743, in Codicis Iuris Canonici Fontes, Fonti, vol. 1, Romae, Typis Polyglotis Vaticanis, 1926, pp.795-803; Benedictus XIV PP, En. Ap. Alatae Sunt, 26 iul. 1755, in Enchiridion delle Encicliche 1, Bologna, 1994, pp. 612-670. Cfr. Tanasiychuk, A.,  Il fidele Cristiano, p. 321.

[2] Cfr. Pius, PP. XII, Motu proprio: Cleri Sanctitati, de Ritibus Orientalibus, de personis pro Ecclesiis orientalibus, 2 iunii 1957, in AAS 49, (1957), pp. 433-603. (Daqui em diante: CS).

[3] Cfr. CCEO cc. 29-32; 39-41.

[4] Cfr. CS cc. 6-15.

[5] Cfr. CCEO c. 38: «Christifideles Ecclesiarum orientalium, etsi curae Hierarchae vel parochi alterius Ecclesiae sui iuris commissi, tamen propriae Ecclesiae sui iuris permanent ascripti».

CIC/83 c. 112: «§2. Mos, quamvis diuturnus, sacramenta secundum ritum alius Ecclesiae sui iuris recipiendi, non secumfert adscriptionem eidem Ecclesiae».

[6] Cfr. CCEO c. 10: «Verbo Dei inhaerentes atque vivo Ecclesiae magisterio authentico adhaerentes tenentur christifideles fidem immenso pretio a maioribus custoditam ac transmissam integre servare et aperte profiteri necnon eam et exercendo magis intellegere et in operibus caritatis fructificare».

[7] Cfr. CCEO c. 40: «§3. Ceteri quoque christifideles proprii ritus cognitionem et aestimationem foveant eumque ubique observare tenentur, nisi iure aliquid excipitur».

[8] Cfr. CCEO c. 1497: «§1. Ignorantia vel error circa leges irritantes aut inhabilitantes earundem effectum non impediunt, nisi aliud iure expresse statuitur».

[9] Cfr. Nuntia 29 (1989), p. 41.